M.P. – Bom dia, obrigada
por nos conceder esta entrevista. Porquê o nome profissional “Alexandre Frey”?
A.F. – Quando me inscrevi
na Ordem dos Médicos em Portugal, tive de escolher um nome clínico. “Alexandre
Frey” era mais curto e mais fácil de memorizar do que “Alexandre Almeida” ou
“Alexandre Pinto de Almeida”, além de que há muito que o apelido Frey
era espontaneamente escolhido pela maior parte dos meus colegas e amigos quando
se me dirigiam. Frey é o apelido que herdei do meu querido avô materno, de
nacionalidade suíça, e que foi um modelo para mim. Quando comecei a exercer em
França, Frey era igualmente muito mais fácil de dizer, e foi portanto
esse também o nome clínico que ficou.
M.P. – Exerceu em França?
A.F. – Sim, nos últimos 6
anos prestei apoio em França a mais do que uma instituição, duas das quais
conjugavam equipas interdisciplinares alargadas ao serviço de crianças com
diferentes dificuldades – cognitivas, educativas, emotivo-afetivas, sociais e
tantas outras.
M.P. – A infância
interessa-o muito?
A.F. – Sim, o
desenvolvimento da pessoa sempre me fascinou, seja ela criança ou adulto. No
caso da infância, estagiei num hospital suíço, já há muitos anos, num serviço
de Pediatria-Neonatologia, e tive depois experiências muito ricas também em
Portugal, junto de pediatras e pedopsiquiatras competentes, quer em Centro
Hospitalar, quer em Centro de Saúde. Mas o desenvolvimento continua ao longo da
vida, em todas as idades. Na minha prática clínica, sempre trabalhei com gente
de todas as idades.
M.P. – E como surgiu a
Clínica Médica de Serralves?
A.F. – Comecei por montar
consultório na minha residência, mas assim que pude comprei um espaço próprio.
Calhou de ser um grande espaço, com vários gabinetes, bem próximo do museu de
arte contemporânea da Fundação de Serralves. Ficou a ser a Clínica de
Serralves. O meu avô Frey era engenheiro de profissão, mas desenhava e pintava
muito a óleo, isso também me marcou muito. Numa fase ainda embrionária, quando
avancei com o projeto, estavam já a esboçar-se também, na minha abordagem, as
terapias expressivas a que terminei por me dedicar mais tarde.
M.P. – Terapias
expressivas?
A.F. – Sim, as expressões
artísticas podem ser postas ao serviço da terapia: é esse o caso da
arte-terapia, da musicoterapia, da dançaterapia, da dramaterapia, da
poeticoterapia e assim por diante. Cheguei mesmo a presidir, durante cerca de 7
anos, a uma Associação de Terapêuticas Artísticas e Expressivas.
M.P. – Mas pratica algumas
dessas formas artísticas?
A.F. – Sim, desenho desde
há muito (pelos meus 18 anos, cheguei mesmo a estar previsto como ilustrador de
uma importante editora de livros escolares). Também escrevo poesia, entre
outros géneros. E sou tangueiro há mais de 20 anos, fiz mesmo uma formação em tangoterapia
com o fundador do método, o psiquiatra argentino Federico Trossero.
M.P. – Porque escolheu
“Mente Sã em Corpo São” como slogan da sua clínica?
A.F. – Trata-se de uma
citação do poeta Juvenal, a qual resume muito bem a nossa forma de ver a saúde,
que é aliás definida pela OMS como um estado de bem estar físico, psicológico e
social. As palavras do poeta dão ênfase à profunda unidade entre corpo e mente
que está tão aparente, por exemplo, na doença psicossomática; em direção
contrária, seria importante valorizarmos o que poderíamos chamar “domínio
somato-psíquico”. Uma simples desidratação no idoso pode ocasionar alucinações:
certo dia, fui chamado a observar uma senhora idosa sem história psiquiátrica
que subitamente tinha começado com queixas de ver bichos por todo o lado,
bichos que não estavam lá; o principal tratamento, por incrível que pareça, foi
água! O Professor Fernandes da Fonseca, que era o Diretor do Serviço de
Psiquiatria do Hospital de São João quando eu por lá andei, mostrou na sua tese
de doutoramento que os doentes depressivos consultam bem mais do que o comum em
outros serviços, tais como os de Dermatologia, Reumatologia e
Gastroenterologia, sendo que as patologias dessas áreas podem ser tomadas como
“equivalentes depressivos” mesmo quando a depressão em si parece já bem controlada;
tais afeções somáticas podem responder melhor aos antidepressivos, nesses
indivíduos, do que a medicamentos mais específicos das áreas e questão. As
terapias orientais, como a acupunctura, trabalham há milhares de anos com esta
interface corpo / mente que só mais recentemente a medicina ocidental
revalorizou.
M.P. – É por isso que,
sendo mestre em psiquiatria, nunca desistiu de praticar clínica geral?
A.F. – Precisamente. Nunca
consegui abstrair do psíquico em favor do somático ou vice-versa. Por não
ignorar o corpo do paciente mentalmente perturbado, pude por exemplo despistar
em primeira mão um nódulo tiroideu numa paciente depressiva que estava a seguir
– nódulo este que veio a revelar-se maligno; trata-se, infelizmente, de uma
depressão crónica, mas a doente terminou por ser tiroidectomizada e está hoje
em dia livre desse cancro da tiróide. Por não ignorar o psiquismo do doente
somático, pude também compreender, por exemplo, uma moça, minha paciente em França,
que fizera cirurgia de um tumor cerebral pelos 10 anos, o que deixou sequelas
cognitivas importantes levando-a a ser acompanhada numa instituição para jovens
deficientes mentais; acontece que, depois de ter observado uma crise epiléptica
noutra criança da mesma instituição, ela apresentou pouco depois uma
pseudo-crise convulsiva que não cumpria critérios coerentes para ser
considerada epiléptica: era, na verdade, uma crise histérica – oriunda de uma
família muito numerosa, foi durante o seu internamento em neurocirurgia que ela
tinha conseguido ser, durante algum tempo, o centro das atenções de todos; a
crise histérica permitia-lhe voltar a ser o centro das atenções; as educadoras
que a tinham a seu cargo foram convenientemente formadas e adoptaram daí em
diante estratégias adequadas que permitiram uma evolução favorável daquela
situação. Do mesmo modo, e desde o início, as minhas atividades de investigação
centraram-se também no binómio corpo-mente: a minha tese de mestrado, por
exemplo, intitulava-se “Dislexia e Dislateralidade”, colhendo das neurociências
uma nova proposta terapêutica para as dificuldades de leitura e escrita do
disléxico. Nunca consegui isolar o psiquismo do funcionamento cerebral.
M.P. – Mas interessou-o
mais a linguagem escrita do que a linguagem falada?
A.F. – De modo algum. A
minha tese de doutoramento intitulou-se “Uma Teoria Neurolinguística do
Simbolismo Fonético”. Cheguei mesmo a coordenar um departamento de Terapia da
Fala numa universidade, aonde fui o responsável por um doutoramento em
Desenvolvimento e Perturbações da Linguagem. Exerci igualmente funções de
coordenação num instituto que se ocupava essencialmente da voz e da comunicação
profissional, e lecionei numa pós-graduação desta mesma área. Quando me pediram
uma colaboração num livro de Neurologia Clínica, foi portanto para escrever um
capítulo sobre “Perturbações da Fala e da Linguagem”. Além das neurociências,
da fonética e das ciências da voz, da fala e da linguagem, interessou-me muito
também a comunicação não verbal. Deste modo, e para além da comunicação
perturbada, interessa-me igualmente, cada vez mais, como objeto de estudo e em
termos clínicos, a comunicação profissional.
M.P. – Essa experiência
académica e essas atividades de investigação foram-lhe úteis como médico?
A.F. – Muito! Como docente
do ensino superior, lecionei a psicólogos, terapeutas da fala, fisioterapeutas
e também a cantores, atores, educadores e professores do ensino básico. Isso
permitiu-me coordenar com facilidade equipas interdisciplinares integradas por
profissionais de todas essas áreas. Daí que, tendo embora encontrado um método
novo no tratamento da dislexia, nunca tenha deixado de defender uma abordagem
terapêutica interdisciplinar alargada para este tipo de perturbações. O mesmo
na intervenção junto das perturbações autísticas, das dificuldades de
aprendizagem e tantos outros transtornos.
M.P. – Falou de
fisioterapeutas?
A.F. – Sim. Fui o primeiro
autor a reconhecer alterações posturais sistemáticas em disléxicos. Isso
levou-me a ensaiar junto desses pacientes diferentes abordagens terapêuticas,
das quais saliento a abordagem oftalmológica / ortóptica e a abordagem
fisiátrica / fisioterapêutica, bem assim como a reeducação psicomotora. A
Clínica de Serralves foi a primeira instituição da cidade do Porto a oferecer
aos seus pacientes uma intervenção de reeducação postural global (RPG).
Mantemos, ainda hoje, diferentes parcerias e colaborações com instituições da
área da Oftalmologia e da Medicina Física e de Reabilitação. Eu ensinei,
durante bastantes anos, anatomia e fisiologia a futuros professores de educação
física, e ensinei também fisiologia do esforço numa pós-graduação em Ciências
do Desporto; isso leva-me a ter o corpo bem presente, mesmo quando o problema
parece ser mais do lado da mente.
M.P. – A aprendizagem
interessa-o?
A.F. – Sim. Veja bem: eu
lecionei muitos anos em diferentes estabelecimentos, dos quais mais de 10 anos
numa Escola Superior de Educação, trabalhei imenso com psicopedagogos, e ainda
hoje presto serviço, como médico, a um Centro Psicopedagógico. O Brain-Based
Learning é o meu paradigma, e ensinei neurociências a psicólogos,
terapeutas da fala e educadores. Em França, prestei apoio a um Centro
Medico-Psico-Pedagógico e a um Instituto Medico-Educativo. As dificuldades de
aprendizagem sempre me interessaram, clinicamente e como objeto de
investigação. Encabecei nomeadamente um grupo de investigação que pôs em
evidência a importância de certas alterações optométricas subtis em certas
dificuldades escolares. Fui também, durante mais de 10 anos, médico de uma
Universidade onde atendia não só docentes e funcionários, mas também estudantes
– muitos estudantes, os quais experimentam muito mais dificuldades do que
aquilo que se possa imaginar. Nunca deixei de ver a aprendizagem como parte
integrante da saúde de cada indivíduo. Por isso criei, na Clínica de Serralves,
um Centro de Estudos I&D em Saúde e Educação.
M.P. – Na Clínica de
Serralves, trabalha muito também em parceria com psicólogos. Quais as
patologias mais frequentes com que lidam?
A.F. – Eu diria que, no
domínio das perturbações mentais, o grupo de afeções com as quais mais lidamos
é sem dúvida o grupo das perturbações depressivas.
M.P. – É mais importante a
medicação ou o apoio psicológico?
A.F. – A psicoterapia e os
psicofármacos complementam-se muito bem entre si. A medicação torna muito mais
fáceis e rápidos os progressos obtidos mediante o competente apoio psicológico
e as medidas de higiene de vida que favorecem muito, igualmente, a recuperação.
M. P. – A Clínica de
Serralves está a oferecer condições especiais no atendimento a estrangeiros.
Porquê?
A.F. – Nas suas
instalações atuais, a Clínica de Serralves situa-se perto do Consulado do Brasil,
do Consulado de Angola, do CNAI e de duas empresas que prestam serviços a
imigrantes e emigrantes, e temos relações privilegiadas com associações
dirigidas também a esse público. Eu tenho um carinho especial por esses homens
e mulheres que vêm trabalhar connosco, tendo tantas vezes concluído já uma
formação especializada, dedicando-se não raro a actividades penosas,
contribuindo para as nossas reformas sem muitas vezes chegarem a usufruir eles
mesmos da nossa Segurança Social, renovando a nossa população envelhecida
quando nos trazem os seus filhos ou quando por cá constituem família. Outros
trazem-nos as suas economias, os seus investimentos. Muitos vão para o interior
e revitalizam a nossa agricultura. Outros deixam-nos o seu know how
tecnológico. O meu avô suíço veio para Portugal com 30 anos, para apoiar como
engenheiro eletrotécnico a montagem duma central hidroelétrica, mas conheceu a
minha avó e por cá ficou até aos noventa e muitos anos. Eu mesmo trabalhei na
Suíça, no Brasil e em França. A minha companheira é brasileira, e os meus netos
angolanos. Uma filha minha está a trabalhar em França. Sucede que eu falo
várias línguas estrangeiras. Em homenagem a esse meu avô, a essa minha filha, aos
meus netos, a mim mesmo e à minha companheira, eu não poderia ficar indiferente
a esta população migrante que tanto admiro. No caso dos refugiados, há do meu ponto de vista uma obrigação de solidariedade a que ninguém deveria esquivar-se. Digamos que é esta a parte maior da
nossa ação social, em função da nossa localização atual.
M.P. – Muito obrigada uma
vez mais, e boa sorte!
09 de Outubro de
2019