quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Entrevista ao Dr. Alexandre Frey




M.P. – Bom dia, obrigada por nos conceder esta entrevista. Porquê o nome profissional “Alexandre Frey”?

A.F. – Quando me inscrevi na Ordem dos Médicos em Portugal, tive de escolher um nome clínico. “Alexandre Frey” era mais curto e mais fácil de memorizar do que “Alexandre Almeida” ou “Alexandre Pinto de Almeida”, além de que há muito que o apelido Frey era espontaneamente escolhido pela maior parte dos meus colegas e amigos quando se me dirigiam. Frey é o apelido que herdei do meu querido avô materno, de nacionalidade suíça, e que foi um modelo para mim. Quando comecei a exercer em França, Frey era igualmente muito mais fácil de dizer, e foi portanto esse também o nome clínico que ficou.


M.P. – Exerceu em França?

A.F. – Sim, nos últimos 6 anos prestei apoio em França a mais do que uma instituição, duas das quais conjugavam equipas interdisciplinares alargadas ao serviço de crianças com diferentes dificuldades – cognitivas, educativas, emotivo-afetivas, sociais e tantas outras.


M.P. – A infância interessa-o muito?

A.F. – Sim, o desenvolvimento da pessoa sempre me fascinou, seja ela criança ou adulto. No caso da infância, estagiei num hospital suíço, já há muitos anos, num serviço de Pediatria-Neonatologia, e tive depois experiências muito ricas também em Portugal, junto de pediatras e pedopsiquiatras competentes, quer em Centro Hospitalar, quer em Centro de Saúde. Mas o desenvolvimento continua ao longo da vida, em todas as idades. Na minha prática clínica, sempre trabalhei com gente de todas as idades.    


M.P. – E como surgiu a Clínica Médica de Serralves?

A.F. – Comecei por montar consultório na minha residência, mas assim que pude comprei um espaço próprio. Calhou de ser um grande espaço, com vários gabinetes, bem próximo do museu de arte contemporânea da Fundação de Serralves. Ficou a ser a Clínica de Serralves. O meu avô Frey era engenheiro de profissão, mas desenhava e pintava muito a óleo, isso também me marcou muito. Numa fase ainda embrionária, quando avancei com o projeto, estavam já a esboçar-se também, na minha abordagem, as terapias expressivas a que terminei por me dedicar mais tarde.


M.P. – Terapias expressivas?

A.F. – Sim, as expressões artísticas podem ser postas ao serviço da terapia: é esse o caso da arte-terapia, da musicoterapia, da dançaterapia, da dramaterapia, da poeticoterapia e assim por diante. Cheguei mesmo a presidir, durante cerca de 7 anos, a uma Associação de Terapêuticas Artísticas e Expressivas.

M.P. – Mas pratica algumas dessas formas artísticas?

A.F. – Sim, desenho desde há muito (pelos meus 18 anos, cheguei mesmo a estar previsto como ilustrador de uma importante editora de livros escolares). Também escrevo poesia, entre outros géneros. E sou tangueiro há mais de 20 anos, fiz mesmo uma formação em tangoterapia com o fundador do método, o psiquiatra argentino Federico Trossero.


M.P. – Porque escolheu “Mente Sã em Corpo São” como slogan da sua clínica?

A.F. – Trata-se de uma citação do poeta Juvenal, a qual resume muito bem a nossa forma de ver a saúde, que é aliás definida pela OMS como um estado de bem estar físico, psicológico e social. As palavras do poeta dão ênfase à profunda unidade entre corpo e mente que está tão aparente, por exemplo, na doença psicossomática; em direção contrária, seria importante valorizarmos o que poderíamos chamar “domínio somato-psíquico”. Uma simples desidratação no idoso pode ocasionar alucinações: certo dia, fui chamado a observar uma senhora idosa sem história psiquiátrica que subitamente tinha começado com queixas de ver bichos por todo o lado, bichos que não estavam lá; o principal tratamento, por incrível que pareça, foi água! O Professor Fernandes da Fonseca, que era o Diretor do Serviço de Psiquiatria do Hospital de São João quando eu por lá andei, mostrou na sua tese de doutoramento que os doentes depressivos consultam bem mais do que o comum em outros serviços, tais como os de Dermatologia, Reumatologia e Gastroenterologia, sendo que as patologias dessas áreas podem ser tomadas como “equivalentes depressivos” mesmo quando a depressão em si parece já bem controlada; tais afeções somáticas podem responder melhor aos antidepressivos, nesses indivíduos, do que a medicamentos mais específicos das áreas e questão. As terapias orientais, como a acupunctura, trabalham há milhares de anos com esta interface corpo / mente que só mais recentemente a medicina ocidental revalorizou.


M.P. – É por isso que, sendo mestre em psiquiatria, nunca desistiu de praticar clínica geral?

A.F. – Precisamente. Nunca consegui abstrair do psíquico em favor do somático ou vice-versa. Por não ignorar o corpo do paciente mentalmente perturbado, pude por exemplo despistar em primeira mão um nódulo tiroideu numa paciente depressiva que estava a seguir – nódulo este que veio a revelar-se maligno; trata-se, infelizmente, de uma depressão crónica, mas a doente terminou por ser tiroidectomizada e está hoje em dia livre desse cancro da tiróide. Por não ignorar o psiquismo do doente somático, pude também compreender, por exemplo, uma moça, minha paciente em França, que fizera cirurgia de um tumor cerebral pelos 10 anos, o que deixou sequelas cognitivas importantes levando-a a ser acompanhada numa instituição para jovens deficientes mentais; acontece que, depois de ter observado uma crise epiléptica noutra criança da mesma instituição, ela apresentou pouco depois uma pseudo-crise convulsiva que não cumpria critérios coerentes para ser considerada epiléptica: era, na verdade, uma crise histérica – oriunda de uma família muito numerosa, foi durante o seu internamento em neurocirurgia que ela tinha conseguido ser, durante algum tempo, o centro das atenções de todos; a crise histérica permitia-lhe voltar a ser o centro das atenções; as educadoras que a tinham a seu cargo foram convenientemente formadas e adoptaram daí em diante estratégias adequadas que permitiram uma evolução favorável daquela situação. Do mesmo modo, e desde o início, as minhas atividades de investigação centraram-se também no binómio corpo-mente: a minha tese de mestrado, por exemplo, intitulava-se “Dislexia e Dislateralidade”, colhendo das neurociências uma nova proposta terapêutica para as dificuldades de leitura e escrita do disléxico. Nunca consegui isolar o psiquismo do funcionamento cerebral.


M.P. – Mas interessou-o mais a linguagem escrita do que a linguagem falada?

A.F. – De modo algum. A minha tese de doutoramento intitulou-se “Uma Teoria Neurolinguística do Simbolismo Fonético”. Cheguei mesmo a coordenar um departamento de Terapia da Fala numa universidade, aonde fui o responsável por um doutoramento em Desenvolvimento e Perturbações da Linguagem. Exerci igualmente funções de coordenação num instituto que se ocupava essencialmente da voz e da comunicação profissional, e lecionei numa pós-graduação desta mesma área. Quando me pediram uma colaboração num livro de Neurologia Clínica, foi portanto para escrever um capítulo sobre “Perturbações da Fala e da Linguagem”. Além das neurociências, da fonética e das ciências da voz, da fala e da linguagem, interessou-me muito também a comunicação não verbal. Deste modo, e para além da comunicação perturbada, interessa-me igualmente, cada vez mais, como objeto de estudo e em termos clínicos, a comunicação profissional.


M.P. – Essa experiência académica e essas atividades de investigação foram-lhe úteis como médico? 

A.F. – Muito! Como docente do ensino superior, lecionei a psicólogos, terapeutas da fala, fisioterapeutas e também a cantores, atores, educadores e professores do ensino básico. Isso permitiu-me coordenar com facilidade equipas interdisciplinares integradas por profissionais de todas essas áreas. Daí que, tendo embora encontrado um método novo no tratamento da dislexia, nunca tenha deixado de defender uma abordagem terapêutica interdisciplinar alargada para este tipo de perturbações. O mesmo na intervenção junto das perturbações autísticas, das dificuldades de aprendizagem e tantos outros transtornos.


M.P. – Falou de fisioterapeutas?

A.F. – Sim. Fui o primeiro autor a reconhecer alterações posturais sistemáticas em disléxicos. Isso levou-me a ensaiar junto desses pacientes diferentes abordagens terapêuticas, das quais saliento a abordagem oftalmológica / ortóptica e a abordagem fisiátrica / fisioterapêutica, bem assim como a reeducação psicomotora. A Clínica de Serralves foi a primeira instituição da cidade do Porto a oferecer aos seus pacientes uma intervenção de reeducação postural global (RPG). Mantemos, ainda hoje, diferentes parcerias e colaborações com instituições da área da Oftalmologia e da Medicina Física e de Reabilitação. Eu ensinei, durante bastantes anos, anatomia e fisiologia a futuros professores de educação física, e ensinei também fisiologia do esforço numa pós-graduação em Ciências do Desporto; isso leva-me a ter o corpo bem presente, mesmo quando o problema parece ser mais do lado da mente.  


M.P. – A aprendizagem interessa-o?

A.F. – Sim. Veja bem: eu lecionei muitos anos em diferentes estabelecimentos, dos quais mais de 10 anos numa Escola Superior de Educação, trabalhei imenso com psicopedagogos, e ainda hoje presto serviço, como médico, a um Centro Psicopedagógico. O Brain-Based Learning é o meu paradigma, e ensinei neurociências a psicólogos, terapeutas da fala e educadores. Em França, prestei apoio a um Centro Medico-Psico-Pedagógico e a um Instituto Medico-Educativo. As dificuldades de aprendizagem sempre me interessaram, clinicamente e como objeto de investigação. Encabecei nomeadamente um grupo de investigação que pôs em evidência a importância de certas alterações optométricas subtis em certas dificuldades escolares. Fui também, durante mais de 10 anos, médico de uma Universidade onde atendia não só docentes e funcionários, mas também estudantes – muitos estudantes, os quais experimentam muito mais dificuldades do que aquilo que se possa imaginar. Nunca deixei de ver a aprendizagem como parte integrante da saúde de cada indivíduo. Por isso criei, na Clínica de Serralves, um Centro de Estudos I&D em Saúde e Educação. 


M.P. – Na Clínica de Serralves, trabalha muito também em parceria com psicólogos. Quais as patologias mais frequentes com que lidam?

A.F. – Eu diria que, no domínio das perturbações mentais, o grupo de afeções com as quais mais lidamos é sem dúvida o grupo das perturbações depressivas.


M.P. – É mais importante a medicação ou o apoio psicológico?

A.F. – A psicoterapia e os psicofármacos complementam-se muito bem entre si. A medicação torna muito mais fáceis e rápidos os progressos obtidos mediante o competente apoio psicológico e as medidas de higiene de vida que favorecem muito, igualmente, a recuperação.


M. P. – A Clínica de Serralves está a oferecer condições especiais no atendimento a estrangeiros. Porquê?

A.F. – Nas suas instalações atuais, a Clínica de Serralves situa-se perto do Consulado do Brasil, do Consulado de Angola, do CNAI e de duas empresas que prestam serviços a imigrantes e emigrantes, e temos relações privilegiadas com associações dirigidas também a esse público. Eu tenho um carinho especial por esses homens e mulheres que vêm trabalhar connosco, tendo tantas vezes concluído já uma formação especializada, dedicando-se não raro a actividades penosas, contribuindo para as nossas reformas sem muitas vezes chegarem a usufruir eles mesmos da nossa Segurança Social, renovando a nossa população envelhecida quando nos trazem os seus filhos ou quando por cá constituem família. Outros trazem-nos as suas economias, os seus investimentos. Muitos vão para o interior e revitalizam a nossa agricultura. Outros deixam-nos o seu know how tecnológico. O meu avô suíço veio para Portugal com 30 anos, para apoiar como engenheiro eletrotécnico a montagem duma central hidroelétrica, mas conheceu a minha avó e por cá ficou até aos noventa e muitos anos. Eu mesmo trabalhei na Suíça, no Brasil e em França. A minha companheira é brasileira, e os meus netos angolanos. Uma filha minha está a trabalhar em França. Sucede que eu falo várias línguas estrangeiras. Em homenagem a esse meu avô, a essa minha filha, aos meus netos, a mim mesmo e à minha companheira, eu não poderia ficar indiferente a esta população migrante que tanto admiro. No caso dos refugiados, há do meu ponto de vista uma obrigação de solidariedade a que ninguém deveria esquivar-se. Digamos que é esta a parte maior da nossa ação social, em função da nossa localização atual.    


M.P. – Muito obrigada uma vez mais, e boa sorte!



09 de Outubro de 2019

terça-feira, 5 de abril de 2016

Apresentação da Clínica Médica de Serralves

A Clínica Médica de Serralves tem vindo a desenvolver-se com base num modelo biopsicossocial. Este decorre no fundo da concepção de saúde difundida pela OMS: um estado de bem estar físico, mental e social. O seu ideal é o de uma “mente sã em corpo são”. Tanto ao nível da avaliação como da intervenção, perspectiva corpo e mente numa unidade de conjunto. Tem em vista a obtenção de um equilíbrio, uma harmonia entre o somático e o psíquico. Recorre para o efeito não somente à medicina, mas também à psicologia e à reeducação.

Em termos clínicos, está estruturada de momento em duas grandes áreas (com dois números de telefone independentes entre si):

Medicina e profissões da saúde complementares (“paramédicas”):

- Psicologia clínica

Ao nível da primeira, conta por agora com profissionais dos seguintes âmbitos:

Medicina

- Terapia da fala

- Psicopedagogia clínica

- Terapias expressivas

- Terapias orientais

Ao nível da segunda, pratica as seguintes abordagens:

- Psicoterapia individual clássica

- Aconselhamento psicológico

- Hipnose clínica e hipnoterapia

- Terapias de grupo, nomeadamente a terapia familiar e o psicodrama

Mas a clínica tem também a formação em si no seu objecto social, podendo eventualmente contar com a colaboração de outros profissionais tal como o educador e o professor do ensino especial.

Posto isto, a clínica jamais se demite da centralidade da sua vocação, a qual decorre antes do mais de ser em primeiro lugar uma CLÍNICA MÉDICA. 

Não obstante, procura-se ali proceder a uma actuação concertada, com uma coordenação efectiva, conseguida através de múltiplos meios – desde reuniões para apresentações e debate de casos em comum até atendimentos conjuntos quando se justifique, passando por formações conjuntas (daí uma área de eventos em expansão) e sem esquecer a articulação e parceria com unidades clínicas exteriores. Cada paciente há-de portanto beneficiar duma tal abordagem partilhada.

As dificuldades de aprendizagem são um bom exemplo: os pacientes têm com frequência problemáticas psíquicas densas, afectando não somente a sua socialização e auto-estima como igualmente a sua cognição e linguagem, e havendo não raramente défices posturais e psicomotores associados. Poderá justificar-se em tais casos uma coordenação de esforços entre médico, psicólogo, terapeuta da fala, psicopedagogo, psicomotricista e até fisioterapeuta ou mesmo terapeuta ocupacional, por vezes um arteterapeuta, um professor do ensino especial... poderá inclusive beneficiar de um grupo terapêutico que eventualmente venha a ser constituído. O mesmo se poderia dizer das perturbações da linguagem e da comunicação: evidentemente que o terapeuta da fala é aqui de importância primordial, mas quantas vezes em contexto escolar tais dificuldades se traduzem igualmente por perturbações da aquisição da linguagem escrita, nomeadamente dificuldades de leitura e escrita, a justificar a actuação do psicopedagogo clínico, ou quantas vezes o próprio professor do ensino especial, já sem falar do médico, cujo receituário não raro faz a diferença, ou do psicólogo, que é muitas vezes o único que consegue obter a superação de determinados bloqueios. E que dizer da patologia depressiva, que além de uma medicação específica requer igualmente uma abordagem específica ao nível da psicoterapia, e pode beneficiar com vantagem de abordagens musicoterapêuticas, acupunctura e tantas outras? Sabemos que há muitos equivalentes depressivos de expressão somática, a nível reumatológico e gastroenterológico designadamente – casos estes em que poderá pontualmente ser adequado contar-se com a colaboração de outros profissionais, em parceria com a clínica enquanto tal - caso do fisioterapeuta, do nutricionista, etc.       

Aqui fica então esta proposta integradora de uma abordagem global e abrangente sempre guiada pela especificidade do caso: não há doenças, há doentes – nada de mais verdadeiro nesta área. Entre nós, é a especificidade de cada caso em concreto que dita a estratégia da abordagem, que se quer personalizada e congruente com a individualidade de cada pessoa. Eis o perfil duma clínica médica na qual a medicina, em vez de “orgulhosamente só”, se orgulha pelo contrário de ser ciência e técnica, mas de ser arte também, capaz de se articular com outros ramos da clínica e com outros ramos do saber.